Amália: O Fado no Mundo e o Mundo no Fado

por Rui Vieira Nery

 

Não temos hoje dúvidas, depois do esforço de investigação rigorosa levado a cabo nos últimos dez a quinze anos, sobre o carácter historicamente recente do Fado no contexto da Cultura portuguesa. Vem-lo dar os primeiros sinais de vida em Lisboa – e mesmo aí enraizado inicialmente de forma quase exclusiva nos bairros pobres da zona portuária da cidade – a partir dos inícios da década de 1830. Alarga depois gradualmente, a partir da década de 1860 e até ao final do século, a sua esfera social e geográfica de implantação, penetrando nos palcos de Teatro Musical do centro de Lisboa, como atracção musical de algum modo “pitoresca” nos âmbitos dos quadros de Revista que procuram representar os tipos humanos característicos da cidade, e entre eles o da figura elusiva do “fadista”, tão bem descrita e caricaturada por autores como Camilo, Eça e Fialho. Por outro lado, é publicado nesse mesmo período em partituras para piano, ora em folhetos soltos ora em colecções de várias peças, por vezes mesmo relativamente extensas, e entra também assim no repertório de salão cultivado pelas meninas de “boa família” da sociedade da Regeneração, para as quais os sinais exteriores de distinção passam ante de mais, como se sabe, pela absorção diligente dos modelos de sociabilidade urbana importados de Paris, com destaque para um domínio, mesmo que rudimentar, da língua francesa e um nível mínimo de iniciação ao piano. Mais uma vez é Eça que nos pinta bem este quadro de uma classe média sempre tão angustiada pelo seu estatuto intermédio e culturalmente híbrido entre os modelos cosmopolitas da elite a que aspira e as raízes populares urbanas que tenta fazer esquecer: veja-se, por todos, o personagem de Luísa, no Primo Basílio, sobre cujo piano, na sala de visitas, estão sem aparente hierarquia relativa entre si as reduções pianísticas das árias de Lucia de Donizetti e da Sonnambula de Bellini e um arranjo do Fado do Vimioso.

A expansão paulatina do género para fora de Lisboa faz-se desde muito cedo na sua história, e por duas vias paralelas. Por um lado pelo fenómeno centrípeto que no plano da formatação do habitus cultural das elites nacionais tem a Universidade de Coimbra, para onde convergem rapazes de todas as regiões do País, com destaque proporcional, como seria de esperar, para os que vêm da capital e levam consigo esta canção sentimental associada aos rituais da boémia juvenil que uma cidade marcada no seu quotidiano pela população estudantil não poderia deixar de proporcionar também ela a estes seus residentes temporários. Mas por outro lado o Fado é também encarado pelo movimento operário nascente, a partir da década de 1870, como um veículo ideal para a difusão das ideias sindicalistas, socialistas e republicanas radicais no seio das classes trabalhadoras de todo o País, e na viram do século está já operacional, como o demonstrou recentemente o antropólogo Paulo Lima, uma verdadeira rede de agitação e propaganda que leva fadistas destacados a outros centros de trabalho assalariado no interior do País, sejam eles os núcleos industriais das periferias de Lisboa, as fábricas de lanifícios da Coilhã ou as zonas do trabalho agrícola à jorna no Alentejo.

Esta expansão à escala nacional reforça-se com a introdução em Portugal da indústria disco-gráfica, logo a partir de 1902, e depois com a implantação da Rádio, desde os finais da década de 1920. Continuando muito embora centrado em Lisboa, onde nos anos 20 e 30 se estabelecem os primeiros espaços performativos estáveis do género – as chamadas “casas de Fado” – o Fado torna-se cada vez mais num fenómeno nacional, dominando claramente o circuito da música popular urbana em todo o País.

O seu carácter idiossincraticamente português dificulta, contudo, as suas possibilidades de difusão internacional, antes de mais pela barreira da língua, depois pela sua ligação ainda muito estreita às temáticas e valores específicos do quotidiano popular lisboeta, e finalmente pela própria inexistência de comunidades significativas de emigrantes portugueses nos demais países europeus, capazes de servirem de elos de ligação local ao género e de factores da sua penetração no seio das sociedades em que se integraram. A estas condicionantes há ainda que juntar um fenómeno de claro preconceito elitista da parte das autoridades portuguesas que teriam, em princípio, os meios adequados a apoiar essa potencial difusão internacional, mas que na generalidade hesitam nessa missão, como consequência da memória ainda vigente das origens semi-marginais do género e da duvidosa natureza identitária que na sua maioria as elites intelectuais portuguesas da época, tanto de Direita como de Esquerda, continuam a atribuir a essa canção nascida há tão poucas décadas nas tabernas e nos bordéis do porto de Lisboa.

Até aos finais da II Guerra Mundial, por conseguinte, os únicos espaços de expansão do fado fora da Metrópole portuguesa são as colónias africanas, cuja população de origem europeia vai crescendo com as políticas de fomento colonial da I República, e o Brasil, onde a comunidade portuguesa tem desde há décadas uma massa crítica relevante e onde a tradição do espectáculo público sempre manteve ao longo de todo o século XIX fortes laços com a vida artística em Portugal. Às colónias deslocam-se de quando em quando as chamadas “embaixadas do Fado”, troupes de fadistas e guitarristas constituídas para o efeito, por vezes com grandes nomes do campo fadista, como as fadistas Madalena de Melo e Berta Cardoso, o guitarrista Armandinho ou o violista Martinho da Assunção, cujas partidas e chegadas nos paquetes da rota de África têm cobertura atenta por parte dos periódicos especializados do género, como A Guitarra de Portugal ou A Canção do Sul. Ao Brasil, por sua vez, chegam regularmente companhias portuguesas de Opereta e de Revista, que aí apresentam nas principais cidades alguns dos maiores êxitos dos palcos de Lisboa, muitos deles incluindo números de Fado com grande sucesso junto do público brasileiro (é, por exemplo, o caso, em 1936, de uma célebre e à época mediática digressão ao Brasil de uma companhia teatral dirigida por Vasco Santana e Mirita Casimiro, de que faz parte a fadista Ercília Costa). De resto, é significativo que a discografia musical brasileira, logo desde as primeiras décadas do século XX, inclua um número considerável de gravações de Fado, fenómeno que, por sinal, permanece em grande parte por estudar e sobre o qual o editor José Moças tem vindo a realizar nos últimos anos um trabalho de levantamento pioneiro.

O primeiro evento de que hoje temos referência que se  tornou num marco da divulgação internacional do Fado fora deste circuito luso-afro-brasileiro parece ter sido a escolha da já referida Ercília Costa, uma das grandes fadistas das décadas de 20 a 40, conhecida como a “Santa do Fado” pela postura solene e pela intensidade expressiva das suas interpretações, para integrar a representação portuguesa à Feira Internacional de Nova Iorque, em 1939, a convite do Secretariado da Propaganda Nacional de António Ferro. mas a iniciativa não parece ter tido continuidade imediata na política de representação internacional do Estado Novo, nem ter, por outro lado, desencadeado especial interesse pelo Fado no circuito do espectáculo nova-iorquino, tirando alguma curiosidade demonstrada por este género “exótico”, ao que parece, por certas estrelas do espectáculo americanas, como Bing Crosby ou Cary Grant.

Por conseguinte é só quando Pedro Teotónio Pereira, Embaixador de Portugal em Madrid, resolve convidar Amália Rodrigues para se apresentar na sua Embaixada ao público espanhol, em 1943, que se abre uma nova fase na promoção do Fado além-fronteiras. É um primeiro passo, mas Amália causa uma impressão profunda na elite espanhola, e por outro lado conhece Conchita Piquer, Imperio Argentina, Carmen Amaya, Niña de los Peines e outras estrelas do Flamenco, que a influenciam de tal modo que se decide a experimentar ela própria as canções tradicionais espanholas, num primeiro passo para a constituição do que virá a ser o seu repertório assumidamente internacional das décadas seguintes.

Quando Amália vai pela primeira vez ao Brasil, em 1944, alcança um sucesso considerável no Casino de Copacabana e no ano seguinte regressa para uma estada triunfal, de Maio desse ano a Fevereiro do seguinte. Acompanha-a uma companhia de primeiras figuras do Teatro Musical ligeiro lisboeta, com destaque para o compositor Frederico Valério, que começara entretanto a escrever para a sua voz alguns dos grandes fados-canção que passarão a ser um dos pilares do seu repertório: o fado Maria da Cruz, o Ai Mouraria, o Fado do Ciúme. A revista Boa Nova e a opereta A Rosa Cantadeira, ambas no Teatro Apolo do Rio, esgotam lotações e Amália é aclamada como uma vedeta de primeira grandeza. A partir daí o Brasil tornar-se-á, no decurso das décadas seguintes, um ponto de passagem recorrente da artista.

Mas o sucesso brasileiro poderia facilmente ficar restrito à tradição já descrita do circuito lusófono atlântico. A prova de fogo que marca de uma vez por todas a mudança tem de ser necessariamente a das grandes capitais do mundo ocidental desenvolvido, e Paris parece ser o primeiro alvo a atingir. É aí que se estreia numa das discotecas mais requintadas da capital francesa, o Chez Carrère, mas canta também de improviso no Maxim’s para Rita Hayworth e o Aga Khan. E logo de seguida nesse mesmo ano abrem-se-lhe as portas do Ritz, em Londres. Em ambos os casos são iniciativas promovidas oficialmente por António Ferro, sem grande impacte público imediato, mas dão a Amália os primeiros contactos decisivos nos circuitos do entertainment internacional. 1949 fecha com uma tournée triunfal ao Brasil, onde virá a gravar os seus primeiros discos, para a editora Continental, um veículo igualmente fundamental para a sua divulgação além-fronteiras. Em 1950 vêm os espectáculos integrados no Plano Marshall, em Berlim, Roma, Trieste, Dublin, Berna e Paris, todos eles êxitos estrondosos.

1952 é o ano de um salto qualitativo decisivo, com a estreia em Nova Iorque, na discoteca La Vie en Rose. O Time Magazine testemunha que “a multidão fica extasiada” com Amália e o New Yorker considera-a “a cantora estrangeira mais arrebatadora que os nossos clubes nocturnos apresentaram desde há muitos anos. […] trata-se de qualquer coisa de muito especial”. Regressará a Nova Iorque no ano seguinte, e aí será convidada especial do programa de maior audiência da Televisão norte-americana, o Eddie Fisher Show, perante milhões de espectadores fascinados. Em 1956 estreia-se em Paris no Olympia, ainda como atracção da primeira parte do programa, mas em 1957 regressa já àquela sala como estrela absoluta do cartaz, retornando sucessivamente ao Olympia em 1959 e 60, bem como, na mesma cidade, ao Bobino (1960) e ao La Tête de l’Art (1962), também eles espaços a que voltará em triunfo nos anos subsequentes.

A partir daqui não podemos senão assinalar grandes marcos do seu percurso: em 1966 o Lincoln Center de Nova Iorque, com a New York Philharmonic regida por André Kostelanetz, a que tornará dois anos mais tarde; ainda em 1966 o Hollywood Bowl de Los Angeles, com a Los Angeles Philharmonic, de novo com Kostelanetz; em 1967 êxito esmagador no MIDEM de Cannes, o mais importante festival da indústria discográfica mundial; em 1968 a Roménia e em 1969 a União Soviética, apesar de todos os obstáculos diplomáticos inerentes à passagem da Cortina de Ferro por uma artista portuguesa; em 1970 a Feira de Osaka e o Sankei Hall de Tóquio; em 1971 o teatro Lírico de Milão e o Palladium de Londres; em 1972 um show dirigido por Ivon Curi no Canecão do Rio de Janeiro E depois do 25 de Abril de 1974, quando um súbito ostracismo político inteiramente injustificado dificulta durante alguns anos o seu contacto directo com o público português, será ainda no estrangeiro – e até ao final da sua carreira, já nos anos 80 – que Amália continuará a encontrar um carinho nunca esmorecido e uma consagração permanente.

É um fenómeno absolutamente novo, sem quaisquer precedentes comparáveis, como vimos, na história do Fado. Mas reconheça-se que se trata acima de tudo de um triunfo pessoal do génio de Amália, mais do que directamente de uma vitória do Fado, por si mesmo. O pós-guerra e as décadas de 1950 e de 60 são, é verdade, um período de curiosidade crescente dos públicos urbanos internacionais para com músicas até então excluídas do cânone de um mercado do espectáculo e do disco essencialmente dominado pela indústria da música popular urbana anglo-americana. Mas o ritual secreto e introvertido do Fado lisboeta, tal como este chegara aos meados do século XX, era demasiado hermético culturalmente para poder chamar a atenção desse mercado potencial. Era preciso reinventar, de algum modo, o género, de forma a torná-lo exportável para fora do seu contexto original e esse será precisamente o contributo fundamental de Amália Rodrigues.

Antes de mais é a própria dimensão cénica do género que importa redefinir. O Fado tem de passar dos espaços íntimos e da ressonância acústica das “casas típicas” para o palco de uma grande sala de espectáculos, com tudo o que isso implica de transformação na técnica de projecção vocal e no recurso indispensável à amplificação. As sequências simples de três ou quatro fados em ambiente intimista têm de dar lugar a programas completos de doze a vinte canções em cena, com um encadeamento ritmado que garanta variedade interna e criação de dinâmicas crescentes e de clímaxes de tensão emocional. A própria presença física do cantor tem de ser repensada em favor de um carisma e de uma dramaticidade que fixe a atenção do público mesmo sem o recurso a outros adereços musicais. Em todos estes aspectos Amália revela uma intuição a toda a prova: veste-se quase sempre de preto, mas com uma espectacularidade quase operática no jogo sofisticado das saias longas, dos xailes e das jóias; aprende a usar o microfone como ninguém, fazendo-o ecoar sussurros e gritos numa gama sempre controlada por uma técnica vocal solidíssima, mesmo quando no fim da vida a voz começar a traí-la; e sobretudo sabe escolher na perfeição o seu repertorio de forma a garantir a comunicação ideal com os seus públicos de cinco continentes.

É sem dúvida neste último terreno que as suas escolhas são mais inteligentes. No estrangeiro – para lá do recurso ocasional a um Fado Menor ou a um Menor do Porto, e mais tarde com as excepções notáveis do Fado Vitória e do Fado Pedro Rodrigues, assentes agora no Povo que Lavas no Rio de Pedro Homem de Melo e no Primavera de David Mourão-Ferreira – não canta muitos fados estróficos tradicionais, talvez porque a arte de os estilar seja demasiado idiossincrática para os ouvintes não lusófonos. Centra-se, em vez disso, nos fados-canção belíssimos de Frederico Valério, de uma linguagem melódica universal onde o sabor fadista advém do dramatismo castiço intrínseco do canto e não tanto da tradição pura do improviso vocal livre da tradição dos Mourarias e Corridos. Tampouco cantará demasiado no estrangeiro os novos fados de sabor sofisticado que Alain Oulman lhe escreve sobre os grandes poetas portugueses eruditos, de Bernardim e Camões a Homem de Melo e Mourão Ferreira, e destes a Alexandre O’Neil, Manuel Alegre ou Ary dos Santos. Da Gaivota, do Com Que Voz ou do Maria Lisboa de Oulman logo regressa, no seio de um mesmo programa a outros fados estróficos mais antigos como o Povo Que Lavas no Rio de Joaquim Campos ou o Que Estranha Forma de Vida, de Alfredo Marceneiro, mas gosta de cantar também os fados mais ligeiros de Alberto Janes, em particular o Vou Dar de Beber à Dor. E acrescenta-lhes com frequência marchas de Lisboa e cantigas tradicionais rurais – sejam elas malhões, viras ou cançonetas de festa popular de aldeia. Em Amália, o Fado alarga-se para abranger todas estas formas da expressão lírica portuguesa, e é nessa sua acepção abrangente que se espalha pelo mundo.

Mas mais importante do que esse alargamento dentro das fronteiras da canção portuguesa é o facto de Amália fazer questão desde o início da sua carreira internacional de cantar outras línguas e outros cancioneiros. Logo de início são as canções espanholas, sejam elas flamencos, peteneras ou sevilhanas, e depressa se estendendo aos boleros e corridos latino-americanos – tudo isto, diga-se de passagem, perante grandes protestos patrióticos das eternas padeiras de Aljubarrota, que vêem neste ecletismo ibérico uma perigosa abertura a um suposto imperialismo castelhano. Depois chegam o Samba e o Baião brasileiros, aprendidos in loco com Luís Gonzaga ou Lupicínio Rodrigues. E nas décadas seguintes virão as canções francesas – incluindo algumas compostas expressamente para a sua voz por Charles Aznavour, como Ay, Mourir Pour Toi – e as italianas, com destaque para Una Canzone Per Te, do repertorio de Sergio Endrigo, que a acompanhará como um amigo fiel nas suas últimas digressões. Em todos estes cancioneiros Amália canta aquilo que “lhe sabe a Fado”, como ela própria gosta de dizer, ou seja, aquilo que numa canção noutra língua lhe pode sugerir o mesmo canto magoado, a mesma tensão dramática, a mesma entrega emocional. E na sua voz todas estas canções se tornam de facto outros tantos fados, que sem terem nascido na Mouraria acabam através de si por deixar transparecer a dimensão universal essencial da própria identidade portuguesa. A tudo isto chamei uma vez, pouco depois da morte de Amália, “Um Fado para lá do Fado”, e é esta a expressão que continua a agradar-me mais para abranger o conjunto deste seu repertorio aparentemente tao eclético mas afinal de contas tao intrinsecamente coerente.

Amália levou por certo, como ninguém antes dela, o Fado ao Mundo, mas talvez isso só tenha sido possível, à escala impressionante a que o fez, porque soube também trazer o Mundo ao Fado. E é essa, por certo, a lição mais importante do seu legado para os caminhos sempre novos que o Fado continua e continuará a trilhar, como o fez, afinal de contas, desde a sua origem tão marcada pela viagem, pelo deslumbre pelo novo e pelo diferente, pelo “pungir dos desejos” do cruzamento fascinante das mestiçagens.

 

 

Amália Rodrigues, 1967. Fotografia de Augusto Cabrita. Col. Museu Nacional do Teatro e da Dança